Jornal Expresso – Texto publicado na edição do Actual de 18 de Setembro de 2010
Autor José Manuel dos Santos
“George Steiner conta que foi numa estação de comboios que teve um dos encontros da sua vida. Com o tédio a rodar-lhe em volta como um insecto, caminhou, com passos desencontrados, para um quiosque que vendia livros. Olhou-os com atenção distraída, mas, sem saber porquê, o olhar fixou-se-lhe numa capa. Nunca lera o nome daquele autor. Com a incredulidade irritada do sábio ou do erudito que descobre, sob o céu ou sobre a terra, coisas que a sua ciência desconhece, comprou o livro com um gesto ligeiro de cepticismo. Sentou-se num banco, abriu-o com curiosidade distante e começou a ler. O olhar não se desviou mais daquelas pequenas letras negras impressas naquelas pequenas páginas brancas. Perdeu o comboio que o levaria de uma cidade onde falara de Heidegger para outra onde falaria de Sófocles. Nas suas mãos estava uma colectânea de poemas de Paul Celan. Naqueles versos descobriu “uma língua a norte do futuro”. Steiner lembra como lugar encantado essa estação de comboios. Mas, quando hoje fala de aeroportos, o seu olhar não é esse. Fala deles para falar do que se tornou uniforme, massificado e superficial: o inglês de aeroporto, a literatura de aeroporto, o conhecimento de aeroporto.
Há aeroportos em muitos livros, em muitos filmes, em muitas fotografias. Naquelas em que Augusto Alves da Silva fotografou, nos Açores, o aterrar dos aviões de Bush, Blair e Aznar, chegados para a cimeira que decidiu a invasão do Iraque, há o silêncio que precede os grandes desastres.
Quando comecei a viajar, os aeroportos fascinavam-me. Olhava os rostos desejosos dos que partiam e os rostos saciados dos que chegavam. Adivinhava destinos e origens, decifrava intenções e palavras, imaginava negócios e prazeres. Previa o dinheiro que uns ganhariam e aquele que outros gastariam. Enquanto esperava, deambulava pelo aeroporto e, quando dava por mim, tinha as mãos cheias de compras.
Nos aviões, quando a noite se tornava lenta e interminável, vi dormir e acordar, escrever e jogar às cartas, chorar e amar. Assisti a metamorfoses quase kafkianas. Pessoas que começavam a viagem com um sorriso no rosto e uma calma no corpo, a meio, acossadas pela incomodidade ou pela claustrofobia, tornavam-se feras enjauladas: levantavam-se e sentavam-se, rodavam sobre si mesmas, enraiveciam-se e agitavam-se. Algumas experiências às quais não deixo de aproximar o nome de Dante, vivi-as em “viagens oficiais”. Nessas viagens para a China ou a Austrália, depois de horas de sono incerto e de vigília desesperada, todo o avião era um hálito espesso, pegajoso e sujo. Ouviam-se ruídos: ressonares, roncos, silvos, suspiros, gemidos, bocejos, flatulências. Mulheres que apareciam elegantes e bonitas acabavam desfiguradas e medonhas. Homens que eram eloquentes e sagazes tornavam-se tartamudos e broncos. Ver um general desfraldado, um cardeal descomposto, um ministro empenado, um banqueiro rameloso, uma cantora desmaquilhada, um juiz sonâmbulo, um autarca trôpego, um jornalista estremunhado constitui prova insubstituível da igualdade humana. Sem ter aviões para o saber, era também disto que Napoleão falava, citando Montaigne, quando dizia que nenhum homem é grande para o seu criado de quarto.
Hoje, os aeroportos são dos lugares mais hostis da Terra. Estão entre a pior central de camionagem e o melhor campo de concentração. Depois de todos os onze de Setembro que houve, a segurança insegura, combinada com o economicismo cínico, deu pretextos a tudo: violação de direitos, autoritarismos sucessivos, descortesias inaceitáveis, ameaças estúpidas. Os atrasos dos aviões passaram a ser normais. A agressividade dos seguranças (de empresas privadas, note-se) é habitual. A desqualificação dos serviços tornou-se natural. Às companhias tudo é permitido, aos passageiros nada. Se alguém protesta, reclama ou exige, é olhado como terrorista, louco ou arrogante. Nos aeroportos portugueses (sobretudo no de Lisboa), junta-se a isto, que é universal, uma insensatez incompetente que nos é própria e intransmissível. Ainda há dias vivi, mais uma vez, nos voos da TAP (se for preciso, conto a história) aquela mistura de prepotência, inépcia, arbitrariedade e insolência que nos convence de que esta se tornou uma das piores companhias aéreas de um mundo que as tem tão más. Que tudo aconteça à custa do dinheiro de todos só torna ainda o caso mais inaceitável. Na TAP, o lema passou a ser: o cliente nunca tem razão e é preciso que o saiba.
No meio da nova ordem e do novo caos dos atuais aeroportos, às vezes ainda se vê um rosto que nos fala ou se descobre um livro que nos falta. Como diz, com aquela inconsciência do tempo que a faz invencível mesmo na derrota, Liubov, a falida proprietária rural da peça “O Ginjal”, de Tchekhov, são estes sinais que tornam as desgraças inverosímeis.”