«Fez o primeiro curso de voo. Traçou rotas para África e América e trouxe um Papa a Lisboa. Aos 90 anos, orgulha-se de ser piloto da TAP.
Fiz-me piloto por acaso e tive uma vida cheia. Voei para todo o lado, numa época em que tudo era novo, mas se me perguntar qual é o dia mais feliz da minha vida, digo que é o que estou a viver hoje. Posso é garantir que ainda tenho muito orgulho e vaidade em ser um piloto TAP”. É assim que o comandante João Graça descreve a sua história, que se confunde com a da aviação comercial em Portugal.
Em 1946 integrou o primeiro curso de pilotos da companhia, fundada um ano antes pelo Estado, traçou e experimentou rotas novas, pilotou aviões modernos, sobrevoou o Mundo e descobriu os segredos da estratosfera. Hoje, aos 90 anos, é o único sobrevivente do curso, mas ainda tem energia para desfiar episódios fantásticos que nunca teriam acontecido se não tivesse trocado o curso de Engenharia pelos comandos de um avião, primeiro na Força Aérea, depois na TAP.
Reformado desde 1980, recorda que “se a TAP está entre as dez companhias mais prestigiadas do Mundo, isso deve-se à disciplina militar, à organização, que foi imposta desde o início. A TAP deve o que é ao grupo que tem, porque os pilotos deram continuidade ao nosso trabalho, e à manutenção que nos tem acompanhado. Trabalho, curiosidade, estudo, pioneirismo, abnegação, entusiasmo, interesse e sacerdócio foram as regras que nos impusemos desde o primeiro dia e é com esse clima que a TAP continua”.
HERÓIS DO AR
Pioneiros a traçar rotas para a Europa e África, educados e com formação exigente, os primeiros pilotos da TAP destacavam-se na sociedade portuguesa, onde ainda grassava um elevado grau de analfabetismo. “Havia pouca gente qualificada, éramos tratados como príncipes e muito bem pagos. O que vale o Cristiano Ronaldo, que não tem conhecimentos nenhuns? Os pilotos têm nível universitário… e digo-lhe mesmo que muitas raparigas entravam para assistentes de bordo só para apanharem um piloto. Conheci várias… e sabe, não nos devemos ralar… tudo é simples quando as coisas são naturais”, recorda a sorrir.
Foi com esse à-vontade que João Graça sempre viveu. Nasceu no Alentejo, quando o pai já tinha 65 anos, e aproveitou a liberdade de uma educação avançada para a época para fazer apenas o que quis. “Já era comandante da TAP quando parti em busca de coisas novas. Fui para a companhia de aviação de Angola, depois para a SATA, nos Açores, e em 1955 já ganhava 30 contos. Era muito dinheiro, numa época em que um bom ordenado chegava aos mil e oitocentos escudos”, conta.
“Estava divorciado da minha primeira mulher e, como tive um convite da Pan America, fui até Miami. Não entrei porque já tinha mais de 27 anos, mas aproveitei para conhecer Cuba, ainda no tempo do presidente Fulgencio Batista. Ia muito ao Tropicana, talvez o melhor cabaré do Mundo, e aí conheci pessoas que me aliciaram a ir até à Jamaica e à Venezuela”. Reconhecidas as qualificações como piloto TAP, João Graça não teve dificuldades em encontrar trabalho na Venezuela: “Fiz os testes de equivalência, muito fáceis, e recebi vários convites. Só me vim embora porque aquilo não tinha segurança nenhuma”.
A sua intenção era voltar para a TAP, transformada em sociedade anónima de capitais mistos em 1953, mas o apelo de África soou mais alto. “Fui para a DTA (Angola) durante dois anos e vivi experiências únicas. Fiz voos rasantes para ver a fauna e flora, participei em festas únicas, aterrei de emergência em fazendas perdidas, assisti ao eclodir do terrorismo e, em 1961, integrei a ponte aérea de Brazaville-Leopoldeville, após a independência do ex-Congo Belga. Voávamos horas seguidas para trazer as pessoas”. Não imaginava que a experiência viria a ser útil nos anos seguintes.
Em 1962, regressou definitivamente à TAP e em 1974, já como responsável pela segurança de longo curso, participou nas operações de resgate de “milhares de portugueses” apanhados pela libertação das antigas colónias de Angola e Moçambique. “Todos os departamentos se mobilizaram e deram o máximo para realizar a ponte aérea. Não sei, até hoje, por que milagre não houve uma única avaria. Tenho a certeza que se ficou a dever à nossa manutenção”.
VIAGEM ABENÇOADA
Chegar a horas, sem incidentes, era ponto de honra nos voos da TAP. E a fama tinha voado até longe. Em Maio de 1967, o papa Paulo VI preferiu a TAP na sua deslocação ao Santuário de Fátima. Calhou a João Graça a sorte de ser comandante desse voo. “A companhia aérea de Itália, Alitalia, criou-nos algumas dificuldades, deixando bem visível o desagrado por sermos nós a realizar esta viagem”, conta. Da missão, recorda um Santo Padre “de enorme humildade e grandeza” e o título de Comendador.
Dos tempos aos comandos da TAP, João Graça levou a bordo várias outras personalidades mas retém o entusiasmo e ingenuidade dos passageiros comuns. “Em 1946 criámos a Linha Imperial, que fazia Lisboa, Luanda e Lourenço Marques, e éramos a única companhia a atravessar o Golfo. As outras iam ao longo da costa. Quando passávamos a linha do Equador, para brincar, pintávamos um risco nas lentes dos binóculos e convencíamos as pessoas de que estavam a ver a linha do Equador. Parece mentira, mas havia mesmo quem acreditasse”.
O BRIO DOS GALÕES
Pai de dois filhos, que não seguiram a profissão, João Graça acredita que o sucesso de uma companhia de aviação se faz com trabalho de grupo e organização. Depois de ter desempenhado várias funções, “também burocráticas na companhia”, admite que ser piloto não é o mais importante. É, sem dúvida, o mais garboso. “A ética estava em cima dos nossos galões. Um piloto ganha bem? Claro que sim, mas custa muito a formar. No meu tempo, o comandante era senhor absoluto. E juridicamente continua a ser o ‘deus super homem’. Podemos fazer um relatório e enviar um indivíduo para a polícia, seja ele quem for. Desde que entra a bordo o comandante é senhor absoluto e acabam-se as responsabilidades dos outros“.
Entusiasmado com as memórias, João Graça frisa que abraçou “uma profissão de sonho, à qual dei o máximo, em que me realizei e muito amei”. Feito o último voo, Lisboa-Nova Iorque, aos 60 anos, casou pela segunda vez.
A IMPORTÂNCIA DO 11 DE SETEMBRO
João Augusto Graça nasceu a 11 de Setembro de 1920, no Alentejo. E, em tom de gracejo, diz que “as coisas importantes sucedem nessa data”, referindo-se ao ataque que em 2001 arrasou as Torres Gémeas em Nova Iorque. Impedido de estudar em Grenoble devido ao eclodir da II Guerra Mundial, tirou o brevete civil em 1939 e, no ano seguinte, trocou Engenharia pela Força Aérea. Foi piloto de caça e assalto da Esquadrilha SU de Hurricanes Mark II e comandante dos Gladiators.
O treino levou-o à TAP, em 1946, e a ter formação em Inglaterra. “Ganha-se bem na aviação civil, mas nem todos se adaptam. Um piloto militar tem que ir do ponto A ao B através de todos os perigos, um piloto comercial deve ir do ponto A ao B evitando qualquer perigo. E houve problemas, tínhamos um piloto, excelente em acrobacia, para quem tudo eram emergências. Mesmo os voos TAP”.
NOTAS
MADRID A primeira linha regular da TAP foi inaugurada em 1946, entre Lisboa e Madrid, num avião DC3.
JUMBOS Nos anos 60, a TAP estava em franca expansão e era a única companhia na Europa a voar só em jactos.
37 MODELOS O comandante João Graça voou em 37 tipos de aviões, dos quais destaca a elegância dos 747: “Verdadeira marquesa”.»
artigo publicado no jornal “Correio da Manhã”
(27 Fevereiro 2011)
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